A Morte Vivida – Crônica ficcional

Hoje ela me encarou. Vi sua gélida alva face. Os mantos de sua imensa energia queriam me cobrir, mas desta vez, neguei.  A morte! Ela mesma, a que sempre deixa um arrepio toda vez que pensamos nela. Sei que a vi e a reconheci, pois da última vez em que morri, ela ainda tinha esse mesmo rosto, esse mesmo sorriso e essa mesma perspicácia que a faz viajar pelo tempo e pelo infinito de nossa translúcida alma, sofrida e dolorida.

Mas desta vez tive uma glória diferente da outra, ela não estava tão bem como antes, ou eu estou mais disposto para encará-la de frente. Sei que saí de lá mais rejuvenescido e mais altivo, pois foi ela que me deu uma grande lição hoje: “saiba por onde andam seus pensamentos, pois eles te trouxeram até aqui”. Isso, ela me alertou para a letargia mental e para a inércia espiritual humana que, às vezes, nos assolam de maneira quase que irremediável.

Desta vez houve o remédio: uma pequena gota de esperança e paz; um outro de abrir os olhos para a vida, como se não houvesse nada a sua frente, nem mesmo ela. Mas ela disse que queria me levar, que era chegado o tempo, que nada mais adiantaria, que tudo estava resolvido, pelas bandas de lá.

Mas eu disse, quem resolveu, ou quem disse que está tudo resolvido? Eu não vejo nada resolvido. O mundo está um caos, a vida por aqui está muito difícil para algumas pessoas, então, não tem nada resolvido.

– Mas o que você quer dizer com isto? Que, por acaso, você tem alguma coisa a oferecer a este mundo?

– Claro!

– Mas nunca fizestes nada! Quem és, que pensas que pode resolver alguma coisa nesta imensidão?

– Sou eu, este que buscastes hoje.

– Sei quem és, por isto vim buscar-te. Sem mais demora, vamos?

– Não! – Busquei este não de algum lugar que ainda tento saber de onde. Foi com uma força, que ela deu um passo para trás. Foi aí que senti que seria o meu momento de triunfo.

– Como não? Estou à espera deste momento já faz algum tempo e não tenho tempo a perder. Ainda tenho outras 73 almas para levar ainda hoje.

– Pois que leves essas outras vagantes para onde quer que seja, mas comigo hoje não. Pode até ser amanhã, mas hoje não.

Não sei onde busquei tanta coragem para dizer aquelas palavras.  Não sei se saíram de supetão ou se foi de caso pensado. Apenas disse numa atitude e numa força que talvez fosse eleito presidente de alguma república, de tanta confiança carregada naquela palavra NÃO.

Nunca uma negativa foi tão positiva, uma contradição que buscava em minha vida e não conseguia me levantar do alto de meus quase 2 metros de altura.

Eu sei que consegui isto porque tive uma visão de um passado distante, de um passado esquecido por ela e que estava estampado em meu rosto, mesmo coberto pelo suor do momento. Elas transcendiam o corpo e reluziam diante de nossos olhos. Eu estava transparente, ela fincada, parada, se arremetendo de uma sensação que não sentia há séculos.

Vi todas as suas cores e luzes. Sim, a morte tem suas luzes e seu brilho. Era de uma cor que reluzia a luz dos candelabros, que emitia um sorriso para o universo. Ela tinha as cores da natureza, da mata, dos animais e ainda por cima, podia-se sentir um cheiro de manhã em seu ser, que trazia toda a tranquilidade de uma alma numa persona encarnada.

Mas essa cor e esse brilho logo foram dando lugar à fúnebre atmosfera de uma desilusão amorosa. Ela confiava no amor em todas as pessoas, sentia que todos eram filhos de Deus e por isso todos deveriam se amar. Ah! Como ela tentava amar a todos. Sendo que, certo dia, ela viu seu pai cometer um crime. Daquele dia em diante, as cores foram embora e ela só consegue emitir uma cor por vez. Tem dia que ela é vermelha, outro azul, em outro ela pode ser branca, tem ainda o dia que ela fica preta, mas é no dia que ela fica cinza que vai fazer suas “visitas” para carregar almas.

Aquele passado atormentava a morte! Não sei como consegui visualizar a sua vida. A vida dava medo à morte. A morte é morte porque ela tem pavor de viver, não tinha uma vida boa, nem tampouco uma vida que gostaria de lembrar e reviver. A cada felicidade alheia vivida, a cada sorriso vital, lá estava ela a chorar e desejar a morte. Foi isso que descobri no meu contato com a morte.

– Afaste-se!

– Mas foi você quem veio. Estou aqui e aqui ficarei, pois é o meu lugar. Lembra-se que este é o meu quarto?

Desculpem-me o jogo de palavras, mas se fez um silêncio fúnebre, diante da constatação de que a morte não tinha mais ação para a vida.

Após um longo silêncio de segundos, ela começou a se tocar, como se quisesse se reconhecer, se lembrar, ou ainda se recompor, já que tinha perdido séculos de sua vida infinita, sem saber que ela era um joguete de seus próprios pensamentos e de sua estranheza para as controvérsias do mundo.

Não! Ela não sorriu. Simplesmente foi embora como se não houvesse amanhã, como se a morte não mais lhe desse sentido e a vida poderia, finalmente, retomar o seu curso que fora interrompido num insano estado degenerativo de sepulcro obnubilado.

Daquele instante em diante, meus dedos recomeçaram o movimento. Senti novamente a dor na garganta que estava a me incomodar antes de cair num sono profundo, que acho que seria em mão contínua e única, mas que o retorno veio e, enfim, pude me recobrar os sentidos e a sensação pesada no peito veio com o despertar.

Não sei do destino de ninguém, muito menos da morte. Só sei que um dia, tive uma experiência que só consigo contar para vocês isso, pois as demais coisas vivenciadas, não encontro nos livros e dicionários palavras para conceituar, ou mesmo simbolizar aquilo que eu pude experimentar.

Desta finda experiência, espero perder o medo da morte, pois aquela coragem toda foi um vulto que se apoderou de meu eu e me deu uma coragem que nem a morte pôde suportar.

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